Magazine VISÃO ref.1209
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Magazine VISÃO ref.1209 – “Os filhos perdidos em Inglaterra” – 05/05/2016 by Silvia Caneco e Andre Moreira
Os filhos perdidos em Inglaterra
“Republicamos hoje a reportagem da VISÃO 1209, de 5 de maio deste ano, sobre as histórias e os dramas das mães portuguesas que perderam os seus bebés – temporária ou definitivamente – para os serviços sociais do Reino Unido. Como se diz adeus a um filho?
Reportagem de capa da VISÃO 1209, de 5 de maio de 2016
No momento em que olha para a etiqueta do babygrow comprado para o primeiro filho e ainda por estrear, aquela mãe chega a uma conclusão desoladora: “O Santiago está quase a fazer três meses.
Se calhar… já não vai vesti-lo.” Enquanto o diz, é incapaz de se aguentar de pé. As suas costas vergam e as pernas cedem, caindo de joelhos. Amparada por Leonardo, o pai da criança, Iolanda Menino, 30 anos, 1 metro e 57 para 50 quilos de peso, parece agora mais frágil na sua imensa tristeza. Em quatro horas, é a segunda vez que cede à emoção. Da primeira, quando perdeu a frieza e não conseguiu travar as lágrimas, realçou em falsete: “Ontem à noite disse à minha mãe: ‘Acho que é a primeira vez que me sento desde que isto aconteceu.’ As pessoas ouvem a nossa história e não acreditam. Pensam que mentimos, que somos loucos. Eu sei o que faria se me passasse agora uma faca para as mãos.” Para uma mãe não deve haver imagem da ausência mais tenebrosa do que esta: “Todas as noites acordo assim [cruza os braços com as palmas viradas para cima, em posição de embalar] e procuro pelo meu bebé.” Iolanda faz anos em junho. Leonardo Edwards também. Entre um e outro aniversário, a 22 de junho de 2015, souberam que estavam “grávidos”.
É assim que falam, no plural. Ela soube a meio da gravidez que seria um menino, Leonardo só veria desvendado o segredo durante o parto. Iolanda podia ser descrita como uma técnica de cardiologia com um bom currículo, a viver há cinco anos em Inglaterra, que engravidou do seu companheiro inglês e vivia radiante com a ideia da maternidade.
Demitiu-se para desfrutar do fim da gravidez e acompanhar os primeiros meses de vida da criança, comprou uma máquina de costura e fez colchas para o bebé, foi a todas as consultas, frequentou cursos, contratou uma doula e planeou ao detalhe um parto natural em casa. Ninguém estava à espera que a colcha em patchwork mal pudesse ser usada. Ou que as roupas, como o babygrow branco dos zero aos três meses, ou as peças de malha feitas pela avó materna, nunca viessem a ser vestidas.
Ninguém poderia prever que aos nove dias de vida Santiago iria ser retirado aos pais.
No hospital, apresentaram a Iolanda duas alternativas: “Ou te despedes do teu bebé ou não.” Ela respondeu numa rajada de dor e raiva: “Não, o bebé é meu. Mas que mãe é que diz adeus a um filho?” Quando quis voltar atrás, já era tarde.
A cama de Santiago estava vazia. Tinha sido levado pela polícia e pelos serviços sociais de Southampton, a cidade portuária do Sul de Inglaterra onde a família reside.
O ALERTA VERMELHO
O parto estava previsto para 16 de fevereiro, mas Santiago adiantou-se. Às 21h do dia 31 de janeiro, começaram as contrações. Os pais chamaram a doula, Lilian, que iria assistir e tirar fotografias, insuflaram a piscina, e ligaram para a linha telefónica de trabalho de parto. Foi aí que a desgraça começou, perante dois quase-pais que estavam demasiado felizes para a pressentirem. Carol, a parteira destacada à última hora para o serviço, só chegou dez minutos antes de o bebé nascer. A partir de Portugal, os pais de Iolanda testemunharam via Skype o nascimento de um bebé saudável, mas já não viram quando a parteira puxou o cordão umbilical, provocando uma hemorragia que fez Iolanda perder dois litros de sangue. Carol terá resistido a ir para o hospital depois do incidente e nunca mais foi localizada.
Ao segundo dia de fevereiro, Iolanda teve alta e foi para casa com Leonardo e Santiago. Ao terceiro dia, a campainha tocou sem aviso. Era uma enfermeira. Leonardo terá explicado pelo intercomunicador que a mulher não descansava desde dia 31 e pedido se não poderia voltar noutra altura. Ao quarto dia, é um polícia quem bate à porta. Como Iolanda estava a amamentar, o polícia terá sugerido que mostrasse o bebé pela janela. A mãe assim o fez. Ao quinto dia, uma médica tenta forçar a entrada e os pais descobrem no voicemail um aviso de que teriam de estar no hospital com o bebé até às 17h30. Como a casa tem pouca rede, só ouvem a mensagem quando faltam vinte minutos para aquela hora. Não têm tempo. Entram em pânico, ligam à doula e põem-se a caminho de sua casa. Em casa de Lilian, entram em contacto com uma enfermeira que os acompanhara. Ela responde apenas: “O hospital não me deixa ir aí.” Em Inglaterra, os pais são obrigados a receber em casa enfermeiras parteiras e ‘health visitors’ após o nascimento de um filho. Iolanda e Leonardo juram que não sabiam. Dizem que, no meio da correria de um parto seguido de uma hemorragia que quase matou Iolanda e posterior cirurgia, ninguém os avisou. O tribunal, mais tarde, viria a duvidar desta versão, já que Leonardo era inglês e Iolanda trabalhara em hospitais britânicos. Mas não são os únicos a desconhecer as regras. Entre uma dúzia de enfermeiros portugueses contactados pela VISÃO, a trabalhar em Inglaterra em hospitais de norte a sul do país, só uma, Maria Taborda, estava a par do sistema de visitas. E só as descobriu quando ali foi mãe.
À meia-noite, dois assistentes sociais e dois polícias entram em casa da doula Lilian. Iolanda e Leonardo estão no segundo andar e agarram-se ao bebé. “Temos aqui um contrato de expectativas e queremos que assinem.” Os pais não querem assinar nada. As parcas explicações que lhes são dadas não encaixam na cabeça de um homem e de uma mulher que só querem desfrutar do primeiro filho. Ouvem o ultimato: “Ou vão connosco para o hospital ou o bebé vai sozinho.”
AMEAÇA DE PRISÃO
Como se não bastasse serem suspeitos de negligência por terem impedido as visitas domiciliárias, são acusados de não terem providenciado os necessários cuidados médicos, pois Santiago tinha desenvolvido icterícia. Os pais falaram com a doula, com familiares, procuraram informações sobre a doença e chegaram a marcar uma consulta no médico de família. Todos diziam que era frequente nos primeiros dias, para estarem tranquilos que, se não piorasse, não havia razões para ir ao hospital. Mas o médico que recebeu Santiago e o encaminhou para sessões de fototerapia traçou outro cenário: que o bebé estava em risco de danos cerebrais que poderiam ser “ameaçadores da vida”.
Ao quinto dia, a guarda de Santiago passa para as mãos da polícia. Iolanda pode continuar a amamentá-lo, Leonardo pode vê-lo no horário das visitas, mas são logo avisados: se tentarem sair com o bebé serão presos. No dia 8 são informados de que dentro de dez minutos o caso seria debatido em tribunal. Daí a dez minutos, e nem sabem onde.
No dia 9, os exames ao bebé mostram que está bem, recuperado, e sugerem levá-lo para casa. Não podem: está marcada uma nova sessão em tribunal.
Às 18h daquela terça-feira são rodeados pela polícia, por funcionários do hospital e por uma assistente social e recebem a notícia que nenhum pai quer ouvir. Porquê? Com base em quê? A assistente social passa-lhes para as mãos dois molhos de papéis. E resume: o bebé estava severamente doente e Leonardo era considerado perigoso porque tinha sido associado numa reportagem da BBC à venda de MMS, uma solução de dióxido de cloro vendida como medicina alternativa. Mas porquê, se Leonardo não tinha sido acusado em qualquer processo-crime, se o site de vendas daquele produto não tinha sido fechado, se a substância não era ilegal, se nunca a tinham usado com o bebé, se as análises mostravam não haver sinais de lixívia (é assim que os relatórios descrevem MMS), e se a mãe defendia as práticas da medicina convencional? São páginas e páginas de acusações: “A criança apresentou-se no hospital cinco dias depois do nascimento.”; “Os pais falharam ao não dar atenção médica à criança”; “Os pais são inconsistentes no relatório de doenças do bebé”; “Dadas as crenças médicas do pai estão a ser conduzidas investigações que talvez revelem que o bebé tenha sido tratado com medicação alternativa perigosa”; “O comportamento dos pais mostra que talvez fujam.” Iolanda e Leonardo só tiveram cabeça para ler todo o processo dias depois. “Existe alguma coisa definitiva, com carácter criminoso? Batemos no bebé, partimos-lhe uma perna? Não, é só opinião, opinião, opinião”, revolta-se Iolanda.
ADOÇÕES FORÇADAS?
O que aconteceu a esta mãe portuguesa acontece todos os dias no Reino Unido, mais do que uma vez. A cada 15 minutos, uma criança é colocada sob a guarda do Estado. Os últimos dados oficiais, e que reportam a março de 2015, mostram que no espaço de um ano 31 100 crianças foram ‘capturadas’ por um sistema que tem hoje mais de 69 mil menores ao seu cuidado, o número mais alto das últimas três décadas. Nesse mesmo ano, 5 050 crianças foram reencaminhadas para famílias adotivas num processo irreversível que condena pais biológicos à sentença de nunca mais verem os seus filhos em 96% dos casos, sem o seu consentimento. Segundo um relatório do Parlamento Europeu, em resposta a denúncias de adoções forçadas no Reino Unido, todos os países “têm algum mecanismo legal que permite avançar para adoções” sem o acordo dos pais. Contudo, escreve-se, “nenhum Estado exerce esse poder da forma que os tribunais britânicos o fazem”.
Os incentivos financeiros às câmaras municipais instituídos por Tony Blair (para diminuir a institucionalização de menores e as despesas sociais) são apontados como um dos motivos para o aumento de casos de adoção nos últimos anos.
Mas só uma minoria de políticos e ativistas tem unido vozes contra um sistema que, ao prometer proteger tanto as crianças, pode colidir com direitos fundamentais destas e dos pais.
O Reino Unido repudia as acusações. Contactada pela VISÃO, a embaixada do país em Portugal reafirma que “as leis britânicas são absolutamente compatíveis com o direito comunitário e com os acordos internacionais” e que “a preocupação principal dos serviços sociais consiste em manter as crianças em segurança”, sendo “as decisões finais tomadas por tribunais independentes em função do que é o melhor interesse” dos menores. Não é promovida “qualquer política de adoção forçada sem consentimento parental”, asseguram. Além disso, “a lei é clara, determinando que as autoridades municipais no Reino Unido têm o dever de considerar primeiro a possibilidade de encontrar cuidadores entre a família e os amigos, nomeadamente em outros países, antes de considerar a hipótese de adoção”.
Em quantos casos com famílias portuguesas terá essa opção sido considerada? Não é possível saber porque o sistema britânico não regista a nacionalidade das crianças. No sistema de proteção de menores no Reino Unido entram brancos, asiáticos, filhos de pais mistos. Recém-nascidos, crianças, pré-adolescentes. Com bons e maus níveis de educação. E descendentes de britânicos sobretudo eles. Mas também portugueses. Aconteceu a Santiago, em 2016. À menina mais velha de Raquel e às crianças de Paula, em 2014. Aos cinco filhos de Rita, em 2013. Só entre os casos reportados ao Consulado Geral de Portugal em Londres nos últimos 16 meses (o consulado de Manchester não divulgou os números) contam-se pelo menos 47 crianças filhas de mães ou pais portugueses: 30 em 2015 e 17 até abril de 2016. Desde 2010 foram comunicados 170 casos, clarificou à VISÃO o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Apesar de garantir que é dado acompanhamento a todas as famílias que solicitem ajuda, o Consulado em Londres diz não saber quantas destas crianças foram devolvidas aos pais ou reencaminhadas para adoção.
No último mês, Iolanda Menino e o Consulado entraram em conflito. A emigrante portuguesa em Inglaterra diz que a ajuda se resumiu a uma chamada da cônsul Joana Gaspar e à distribuição de uma lista com contactos de advogados de família.
A família preferiu dispensar ajuda jurídica, diz que se vai defender a si própria em tribunal.
GUERRAS DIPLOMÁTICAS
O Governo da Eslováquia ameaçou levar um caso semelhante ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, depois de os filhos de um casal eslovaco residente no Reino Unido serem retirados à família e enviados para adoção, sem que lhes tivesse sido dada a hipótese de ficarem ao cuidado dos avós, na Eslováquia. A reivindicação não chegou a Estrasburgo porque um tribunal superior reverteu a decisão e devolveu as crianças. Portugal procura evitar confrontos diplomáticos: “O Consulado acompanha na medida em que a Convenção de Viena o permite. Isto é, sem ingerir nos assuntos internos de outro Estado.” Entretanto, “face a repetidas notícias sobre situações de conflito com a legislação britânica envolvendo nacionais portugueses”, a Embaixada de Portugal em Londres começou a convocar líderes comunitários para uma sessão de esclarecimento, a 19 de maio, sobre retiradas de crianças às famílias, adoções forçadas e deportações.
Nos casos analisados pela VISÃO, não havia pais dependentes de álcool ou drogas ou crianças a morrer à fome. Não há provas de negligência ou de abusos físicos, sexuais ou emocionais. Parecem existir apenas mal-entendidos, e falta de apoio jurídico, institucional e, até, emocional. Os processos podem resolver-se em poucos meses, mas, para uma mãe que fica sem um filho, cada dia é uma eternidade.
Aconteceu a Raquel porque a bebé caiu de uma cadeira. A Paula porque o filho mais velho disse na escola que a mãe lhe dera uma estalada. A Rita porque anos antes apresentara uma queixa por violência doméstica. Aconteceu a estas emigrantes portuguesas, como aconteceu a Lucy Allan, que trabalhava na banca, só porque pediu ao médico uma receita para antidepressivos, ou à família que perdeu o filho de 5 anos porque este era obeso.
Mais: quando um casal perde um filho, perde todos os outros os que tem e os que possa vir a ter.
O CASO 38-18-61
Os contactos de Iolanda e Leonardo com Santiago resumem-se agora a uma hora e meia diária num centro a uma hora de distância de autocarro, sob a vigilância de duas pessoas, que tiram notas. Se, por exemplo, chorarem à frente do bebé, serão impedidos de o voltar a ver, porque “pode haver o risco de lhe causarem danos emocionais”.
A 19 de janeiro, Iolanda e Leonardo foram pela primeira vez a tribunal. Cada um deles tinha um defensor e estavam em salas separadas a apresentar a sua história. A advogada de Iolanda diz-lhe: “Eles têm preocupações em relação ao pai. Se assumir isso, dão-lhe o bebé.” Iolanda não quer acreditar: “Quer que eu diga que o Leonardo é um mau pai, um risco para o bebé?” A esta hora, saberia mais tarde, já tinham dito a Leonardo que Iolanda tinha assumido que ele era um perigo para Santiago.
Iolanda nunca o fez.
Os pais fazem a viagem de regresso em choque, por sentirem que até os advogados estão contra eles. Um dia, num dos encontros semanais com o bebé, chateiam-se por o contacto ser interrompido para mudança de fraldas. Porque não a podiam mudar eles mesmos? Ou, porque não mudavam antes e depois daquela hora de visita, se aquele era o único momento em que tinham o direito de estar com o bebé? Estávamos a 4 de março. Disseram-lhes que seriam penalizados durante cinco dias pela agressividade. Foi a última vez que viram Santiago. Nunca o registaram. Não sabem se herdou os olhos castanhos da mãe ou os azuis do pai. Não sabem sequer onde está. Sabem só que no sistema foi convertido num código de seis dígitos: 38-18-61.
A partir daí, mudaram de estratégia. Criam uma página no Facebook Our Baby Was Snatched by The Social Services (“O nosso filho foi roubado pelos serviços sociais”). Dão entrevistas a uma rádio inglesa e à RTP. Logo em seguida recebem um aviso por carta: se continuarem a divulgar pormenores do caso serão detidos. No Reino Unido, estes processos são sigilosos e, todos os anos, 200 pais e mães são presos por quebrarem o silêncio.
Iolanda e Leonardo deixaram de confiar no sistema. Conhecem já demasiadas histórias sem final feliz para acreditarem num julgamento justo.
Como vão acreditar que os testes psicológicos terão outro resultado além do recorrente “personalidade borderline?” Como, se até eles já duvidam do seu juízo? “Mas alguém fica bom da cabeça depois de perder um bebé?”
UM ANO SEM A FILHA, POR CAIR DA CADEIRA
Entre vigílias à porta da embaixada britânica em Lisboa, e o envio de cartas para o primeiro-ministro David Cameron, para o secretário-geral das Nações Unidas ou para o Papa Francisco, os pais de Santiago também já recorreram a Ian Josephs, o autor do livro Forced Adoption (Adoção Forçada) que há anos dá conselhos jurídicos gratuitos a estas famílias e ajuda a planear fugas de mulheres grávidas (ver caixa). O advogado não sabe ao certo quantos emails e telefonemas já recebeu de portugueses porque trabalha sozinho e todos os anos recebe mais de mil pedidos de ajuda de pais desesperados. Raquel, funcionária de um hotel em Inglaterra, também o procurou. Na véspera de ouvir a decisão da juíza, e com uma segunda filha a crescer na barriga, temia perder também esse bebé. As estatísticas não jogavam a seu favor.
Afinal, diz John Hemming, deputado britânico que lidera o grupo Justice for Families e que tem memória do apelo de um casal português a residir em Lincolnshire, só em 20% dos processos os pais conseguem reaver os filhos nos tribunais. As malas estavam feitas: Raquel iria fugir para o Brasil.
O que empurrou esta portuguesa para as estatísticas negras dos serviços sociais ingleses foi algo mais acidental do que não abrir uma porta. Audrey tinha cinco meses quando caiu de uma cadeira de baloiço. No dia seguinte, Raquel detetou um alto na cabeça da filha e levou-a ao hospital. A criança foi vista por uma enfermeira, depois por um médico que, em menos de nada, traçou um veredicto: era um hematoma “não acidental”. Foi chamada uma assistente social e Raquel sentiu logo o estigma de ser emigrante e mãe solteira não importava se tinha boas relações com o pai, se estava integrada, se sabia falar bem inglês. Era culpada até prova em contrário.
Passou 20 dias no hospital, entre exames médicos à filha, intermediados por idas à esquadra e a tribunal. A assistente social argumentava que Raquel não tinha condições para cuidar de Audrey, que a agredira para chamar a atenção do namorado, que estava deprimida, que usava drogas. A mesma assistente social usou como argumentos o facto de a mãe de Raquel ser bipolar (não importava se medicada) e de o pai ter tido problemas com drogas (apesar de estar limpo há mais de 20 anos).
Enquanto Raquel aguentava firme as investigações, o pai da criança, inglês, não suportou o embate. Foi internado um mês numa clínica psiquiátrica. Audrey foi enviada para uma família de acolhimento.
Mãe e filha podiam agora ver-se apenas três vezes por semana, durante duas horas. Raquel pediu para continuar a amamentar, mas só o conseguiu por duas vezes. Num desses contactos descobriu que Audrey tinha arranhões, e um rabo tão assado que sangrava. Fez queixa contra a família de acolhimento, treinada para cuidar de uma criança a troco de 600 libras (750 euros) por semana. O próprio centro também fez queixa.
Mas o tribunal resumiu as suspeitas a uma “paranoia da mãe”. De um dia para o outro, Raquel ficou a saber que aquela família ia de férias e, como tal, a criança passaria para outro lar. De um dia para o outro, de uns braços para outros, como um cesto de frutas.
Antes de uma ida a tribunal, e depois de Audrey ser submetida a quatro raios X que não permitiam chegar a um diagnóstico, Raquel conseguiu autorização para vir a Portugal. Tinha uma suspeita em mente: como em criança tinha recorrentes hematomas e hemorragias, lembrou-se de que poderia ser um problema genético. Foi ao Amadora-Sintra pedir os registos médicos, envolveu a família na procura de fotos suas de criança, consultou o centro genético do Hospital de Santa Maria. Diagnóstico: tinha síndrome de Ehlers-Danlos e havia 50% de hipóteses de a filha o ter herdado.
Em setembro esses dados são rejeitados como prova. Teria de lutar em tribunal contra um relatório de um pediatra que afirmava ter a “certeza absoluta” de que ela tinha agredido a filha e um relatório inconclusivo de um radiologista, dizendo que a criança podia ter uma fratura ou não.
A boa notícia é que a juíza não viu razões para o pai ser considerado suspeito e passou Audrey para a sua guarda; a má notícia é que Raquel, novamente grávida do mesmo pai, teria de terminar o relacionamento.
Como os serviços controlavam e faziam visitas-surpresa, simular a rutura era um risco que não podiam correr. As visitas à filha, em casa do pai, ficaram limitadas a três vezes por semana, durante três horas.
“Foi uma brutalidade. Participei em manifestações.
Conheci pessoas que tinham ido em luta até Bruxelas, que não viam os filhos há dez anos, que tiveram depressões enormes, que enlouqueceram”, recorda, segurando um presente entregue pela segunda família que acolheu Audrey. É um álbum de fotografias, decorado com um laço rosa, com todos os momentos que perdeu do crescimento da filha: o primeiro alimento sólido, a primeira vez que segurou um copo, a primeira vez que gatinhou.
Com uma lágrima a saltar dos olhos, passa as mãos pela prova material de que ninguém, nem nenhum tribunal, poderão devolver-lhe o tempo em que esteve longe.
As sessões finais de julgamento foram marcadas para janeiro. A barriga estava a crescer e Raquel em contrarrelógio. Durante quatro dias, ao lado de uma advogada oficiosa com algumas vitórias naquele tipo de casos, provou que não estava deprimida, provou, através de uma mecha de cabelo que lhe cortaram, que no último ano não ingerira qualquer droga. Numa quinta-feira, a juíza marcou a leitura da decisão para segunda. No domingo, despediu-se de Audrey. Se perdesse, ia vê-la uma vez, duas por ano, no máximo. Dadas as circunstâncias, poderia não voltar a vê-la nunca mais. Também não voltaria a contactar o pai, caso ele se mantivesse como tutor das crianças. As malas estavam prontas para fugir grávida para o Brasil. Não podia conceber a possibilidade de perder outra filha, sem ter sequer a hipótese de a carregar nos braços.
Na segunda-feira, a advogada saiu do tribunal em lágrimas. Mas a assistente social sorria. “São boas notícias para o bebé”, dita. Raquel vai precisar de um tempo para perceber que foi uma exceção: o caso estava fechado, podia ir buscar Audrey ao pai. A assistente da juíza traz-lhe o álbum de fotos dos últimos meses de vida da menina e um recado: “A juíza manda dizer que tem uma filha linda e feliz.” Pela primeira vez em meses, Raquel sentia que o seu coração não era o único a bater. Cancelou a viagem para o Brasil mas marcou uma para Portugal, com a mãe, uma filha nos braços e outra a caminho de nascer. A polícia deteve-a na manga do avião.
Foi preciso atrasar o voo mais de uma hora para que se desfizesse o equívoco: Raquel era livre para sair do país. Nesse mesmo dia, mal aterrou em Lisboa, tomou uma decisão: as filhas não voltariam a Inglaterra. “Não seria capaz de viver sem saber se perante uma queda ou um acidente ia hesitar levá–las ao médico, com medo de as perder.” O casal e as duas meninas estão agora em Portugal. Quem olha para Audrey, cheia de vida, a correr atrás da mãe, a estender-lhe um beijo ou a fazer-lhe festas no rosto, nunca diria que em tempos foram privadas de ser mãe e filha.
FICAR SEM FILHOS DEPOIS DE UM CANCRO
Para a vida de Paula se desmoronar bastou uma denúncia falsa. O mesmo que mudou para sempre a vida de Rita, mas com uma diferença: o caso de Rita chegou aos tribunais, o de Paula não.
Paula Oliveira vive há 12 anos em Cardiff, no País de Gales. É mãe solteira de dois filhos separados entre si por oito anos: Neuza e João. Nunca se esqueceu de que aquele dia, 21 de julho de 2014, era o último dia de escola. Quando chegou a casa, tinha um assistente social à espera: João dissera que uma marca na cara tinha sido provocada por um estalo da mãe. Paula tentou contestar, até lhe dera umas palmadas, mas no rabo, não na cara.
Às 16h, o João, a irmã e a mãe foram levados para o hospital. Os exames para avaliar se eram alvo de maus-tratos prolongaram-se até às 3 horas da manhã. Nessa mesma noite, foram-lhe retirados.
Durante três dias estiveram em casa de uma irmã de Paula, o tempo necessário para que fossem encontradas famílias de acolhimento. A mãe ainda pediu que ficassem juntos, para não quebrarem os laços. Não ficaram. Neuza e João foram retirados da mãe e retirados um do outro. Uns meses antes, a uns quilómetros de distância, acontecera o mesmo com os cinco filhos de Rita, que tinha sido diagnosticada com epilepsia. Paula estava a recuperar de um cancro.
A filha de Paula esteve sempre com a mesma família de acolhimento. O filho correu quatro casas em seis meses agredia outras crianças, partia janelas.
Foi assim até acertar com a última. Podiam ver a mãe apenas durante uma hora, duas vezes por semana.
Durante esse período, Paula foi trabalhando com os serviços sociais. Todos os dias escrevia uma carta expressando a sua revolta. “Fizeram-me muito mal. Com cancro e desempregada, pedi-lhes por tudo para me ajudarem a cuidar do meu filho, que era hiperativo. Nunca me ajudaram. Por uma estalada que não dei, retiraram-mos. Fiquei com uma depressão enorme. Deixei de comer, sentia que o chão me fugia.” Durante esse período, dormiu sempre no sofá, no rés do chão da casa. Era incapaz de subir ao primeiro andar e olhar para as camas vazias dos filhos. Estava perdida. Sozinha.
Como quem tem de provar que está apto a conduzir, fez um curso para provar que era boa mãe. Semanalmente tinha de responder em casa a uma série de perguntas, com a ajuda de uma tradutora.
Passou no teste. A 8 dezembro recuperava os dois filhos. “Foi o dia mais feliz da minha vida.
Nunca mais me separei deles.” Estavam juntos de novo, mas não podiam fingir que não tinha havido separação. Neuza deu pulos de alegria, João dizia ter saudades da última casa e insistia que que- ria voltar para eles. Paula engolia em seco. Horas depois, quando os filhos dormiam, arrastava-se numa insónia e chorava toda a noite.
UMA SENTENÇA PERPÉTUA
No Reino Unido, escolas, creches, centros de saúde, hospitais e todo o tipo de profissionais que trabalhem com crianças são obrigados a seguir protocolos rígidos: as regras sobre o que denunciar estão bem definidas, muitas vezes em papéis afixados nas paredes. Ao mínimo sinal de alarme, são chamados os serviços sociais locais. Rui Santos, assistente social português com experiência profissional em Portugal e no Reino Unido, admite haver “uma paranoia coletiva com a proteção de menores” mas salta em defesa do sistema britânico: “Não é de ânimo leve que se tira uma criança aos pais” e ali, ao contrário do que sucede em Portugal, “os assistentes sociais e os serviços são responsabilizados pela incompetência e pelas más decisões.” Se as triagens das denúncias forem bem feitas, considera Rui Santos, as possibilidades de injustiças são limitadas.
Rui Anjos, especialista em cardiologia pediátrica, trabalhou em Inglaterra nos anos 90, antes dos casos mais mediáticos de maus-tratos a menores, como o Baby P. (ver caixa), terem levado os ingleses a serem ainda mais exigentes. Já na altura, o médico encontrou “um sistema quase pidesco” em que “uma nódoa negra numa criança” era um problema.
“Havia casos horrorosos de maus-tratos a crianças, havia… Mas era um sistema muito exagerado.” Da sua memória nunca saiu o caso bizarro de um casal de emigrantes portugueses que ficou sob suspeita por o filho ter lombrigas.
Bizarro não é adjetivo que se possa aplicar na história de Rita. O que lhe aconteceu, em 2013, foi desencadeado por uma circunstância inevitável que poderia acontecer a qualquer pai uma mentira de um filho. Em abril de 2013, depois de trazer os filhos da escola, a polícia e os serviços sociais bateram-lhe à porta. Levaram o marido para a esquadra e, de uma volta só, os seus cinco filhos para fora de casa. O único argumento que apresentaram foi este: o pai tinha batido no mais velho. O miúdo voltou atrás mas as consequências tornar-se-iam irreversíveis.
Na altura, à semelhança do que aconteceu com Iolanda no tribunal, também tentaram pressioná–la para que se separasse do marido. Só em novembro passado, com o caso entregue a dois novos assistentes sociais, entendeu o porquê. Apresentara anos antes uma queixa por violência doméstica.
Em Inglaterra, essa circunstância permite uma retirada quase automática de uma criança ao ambiente familiar. Foi assim que Rita, em menos de nada, se transformou numa dupla vítima do sistema.
Há quem suspeite que este sistema tem levado as mulheres a ter medo de falar. Guilherme Rosa é autarca em Lambeth, zona de muitos emigrantes e onde a taxa de violência doméstica está no dobro da média do país. “Em Portugal é consensual que quando uma mulher é vítima de violência doméstica pode ficar com os miúdos e tratará bem deles.
Aqui, se há violência, entende-se que a mulher não terá estabilidade para educar uma criança. É um zelo exagerado, um sistema horrível que traumatiza as mulheres e as crianças.” A Rita só lhe diziam que havia risco de “significant harm” (dano significativo). É esse o argumento usado na maior parte dos casos que se tornam polémicos. Não há uma prova de algo concreto, apenas a suspeita de que, no futuro, algo pode correr mal no desenvolvimento daquela criança. Rita chegou a ser presa por umas horas com o então marido, às 7 da manhã, por terem contado a sua história aos jornais.
Iolanda e Leonardo também podem ser detidos por darem a cara pela sua luta numa página de Facebook. Há uns dias, o juiz que tem o caso em mãos escreveu que não existem provas incriminatórias contra os pais: “Mas, com a continuação da vossa campanha na internet, apenas conseguirão alcançar aquilo que dizem estar a tentar evitar a separação permanente do vosso filho.” A 20 de maio, o tribunal decidirá se Santiago segue para adoção.
COMO SE DIZ ADEUS A UM FILHO?
Rita não percebe porque não lhe explicaram, na altura, o que tinha de fazer para recuperar os filhos: “Não houve ninguém que dissesse: eu ajudo-te. Só há pouco tempo me falaram em acompanhamento terapêutico e num programa de violência doméstica.
Rita não percebe e prefere fingir que havia alguma razão lógica, racional, para que cinco filhos fossem arrancados dos seus braços.
Em novembro, assinou um papel a consentir a adoção dos dois mais novos. Disseram-lhe que se o fizesse poderia concentrar-se em recuperar os outros três. Que o conseguiria. Despediu-se deles, as irmãs também. As fotografias dos cinco ainda estão espalhadas pela casa, como se nunca tivessem deixado de ser uma família. As roupas, só há pouco tempo começaram a ser doadas. Rita não põe a hipótese de voltar para Portugal nem de mudar de terra. “Um tem seis, outro sete anos, eles conhecem-nos. Nunca vão esquecer a mãe nem os irmãos. Quando entrarem na adolescência vão vir à nossa procura.” Age como se dois filhos não estivessem perdidos para outra família não sabe qual, não sabe onde, não poderá nunca saber e como se não continuasse a ver os outros apenas de dois em dois meses. Todos os pais criam os seus métodos de sobrevivência. Ninguém está preparado para perder um filho. Muito menos para sempre.
Os passos do sistema no Reino Unido
– Profissionais que trabalhem em escolas, creches, hospitais, centros de saúde seguem um protocolo rígido caso detetem sinais de maus-tratos ou negligência numa criança. Encaminham as denúncias para os serviços sociais, que respondem perante os governos locais.
– Há uma equipa que faz de imediato a triagem, isto é, a avaliação do risco.
– Essa equipa avalia o caso de acordo com as secções 47 ou 17 do Children Act (1989).
– Dentro da secção 17, o assistente social não necessita de ver logo a criança, mas tem de o fazer em dois dias. Na secção 47 terá de sair imediatamente com a polícia, porque se considera que a criança está em perigo.
– O assistente social tem dez dias para fazer um relatório. Ou fecha o caso ou passa-o para as equipas Child in Need, que trabalham com as famílias a longo prazo, ou aciona a Child Protection, pela existência de indícios perigosos. É feito um relatório, partilhado 48 horas antes de uma conferência com os pais.
– Nessa conferência decide-se se o caso avança para um Child Protection Plan (plano alternativo de vida).
– As provas são apresentadas em tribunal. A criança pode ser devolvida aos pais, entregue a familiares, ficar à guarda do Estado ou seguir para adoção.
– Ao contrário do que sucede em Portugal, no Reino Unido uma criança pode ser retirada pelo receio do que venha a suceder no futuro. Acontece quando há violência doméstica no seio familiar ou as mães têm depressões pós-parto.
Muito Obrigada Revista Visao, jornalista Silvia Caneco e Andre Moreira, Jornalista multimedia.